Como já era previsto pela tradição, os restos da escassa dignidade do dia apodreciam entre o cheiro de frutas-maduras-até-demais, fumaça de fogos, o que sobrou do peru de natal e, claro, o indispensável champagne barato.
Cinco para meia-noite e ela não se lembrava de mais nada; de repente adormeceu de bruços no sofá com a roupa e quem sabe até com os calçados da noite anterior, cabelos com aquele cheiro de 'ontem', sendo já quase dia, estando já quase lúcida, mas ainda incapaz de sentir qualquer mudança em relação ao tempo e ao ano que acaba de ir embora, meu deus, vai-se tão discreto, será mesmo já 2009?, ora se já estou aqui, com o cabelo e a maquilagem desse jeito, agora já pouco me importa se é doismilenove noventenove doismilequinze; a única questão é que eu-preciso-dormir-por-amor-de-Deus. Boa noite, pois.
Mas ai, esse sol na cara. Quem foi que te chamou, sol? Me deixa, vá. A festa é minha. Me deixa fingir que ainda é ontem. Me deixa afundar em escuridão e nostalgia, só hoje, ela pensava, me deixa, e quase (quase!) conseguia dormir de volta, já esboçava um sonho, dois, mas ai, esses passarinhos cantando. Meu deus meu deus, não me diga que já amanheceu. Ai, ai. O ano novo. O ano nove. Agora sim, a ficha caía e ela pensava aflita - pensava o quê? nem ela sabia! - , pensava talvez, é dia primeiro e eu estou aqui talvez com essas olheiras e a maquilagem talvez borrada por cima delas, o mundo talvez explodindo em alegria-pelo-futuro-que-já-começou e eu talvez presa aqui sem acreditar, ai não, a casa está absolutamente uma zona, a casa está talvez de pernas para o ar e meus pais estão talvez para chegar de viagem, o-que-fazer-o-que-fazer, ela se perguntava aflita, o que fazer meu deus nesse ano de 2009, as mãos na testa, o remédio pra dor de cabeça talvez já guéla abaixo, meu deus, o ano mal chegou e já tudoestádepontacabeça, seatropelandoassim, tudo incerto, tudo talvez.