Tenho visto seus olhinhos pretos me olhando e percebi também que você anda apagando as luzes antes do fim do expediente, para que eu pense que você já se foi. Talvez para outro aposento, dentro da casa mesmo, ainda não sei os detalhes. Conte-me os detalhes, qualquer dia desses. Eu não devo escrever mais, por hoje. Hoje chegam em minha casa um antigo amigo e a sua família. Ele mora na Alemanha já faz tempo. Acho que eu nem era casada. Ou, se era, ainda não sabia disso, da maneira que as pessoas sabem, ou acham que sabem, quando se casam. Eu nunca lhe contei, mas o meu casamento foi mais ou menos uma armação. Era nisso que a gente acreditava na época. Mentir pra si próprio. Enfim, eles chegam daqui a pouco e eu estou assustada, porque quero parecer a mesma, ou melhor. É mais ou menos como rever um amor da adolescência. Não é o caso. Mas é um pouco isso. Como se, imagine, eu fosse remostrar o meu corpo ao primeiro idiota que me viu nua. Eu tenho curiosidade para saber a opinião deste idiota inicial. Não é, realmente, o caso. Esse amigo nunca foi um amante. Bem que tentou. Mas todos os homens tentam comer as suas amigas. A não ser que as amigas sejam feias ou os homens, gays. É muito aborrecedor ficar driblando os assédios dos amigos. Esse me cansou bastante, durante um longo tempo. Depois abaixou o fogo. E agora... Bom, vamos ver. Talvez eu não vá escrever nos próximos dias. Mas você poderá me ver dançando. Sempre. Para sempre. Meu lindo amor barrigudo e estranho. Sabe de uma coisa estranha? Outro dia vi na TV um programa sobre o Papa e o achei parecido com você, quando ele tinha sua idade. Maluquice? Talvez eu tivesse uma certa predisposição a achá-los parecidos. Mas os poloneses são meio parecidos entre si, não são? Eu tenho essa impressão. Mesmo só conhecendo de polonês você e o Papa. Ah, e o Polansky. Vocês não parecem com o Polansky. E os alemães? Acho um povo esquisitíssimo. Alemães e os japoneses. Eu sei que tudo isso é besteira. É que não gostaria de me despedir tão rápido. Tem umas besteiras ainda maiores que eu fico pensando. Ultimamente, por exemplo, eu cismei que todo mundo em Hollywood é viciado em heroína. E que a Tailândia precisa, urgentemente, de intervenção de um exército de beatas religiosas. São os programas a que tenho assistido na TV a cabo. É isso. Na próxima carta, tentarei ser mais poética. Te adoro. Não sei por quê, ainda. Talvez porque o seu olhar me faz dançar melhor. Beijos. A.
do livro Carta Para Alguém Bem Perto, FY.