-O que eu disse a elas, Rafa, não foi nada demais. Não tem que ficar nervosa comigo. Nós apenas nos sentamos tranqüilas na mesa e ninguém precisou metralhar perguntas, as respostas vinham quase que naturalmente e dessa forma a coisa fluia, plim!
-Hm. Quase que naturalmente.
-É! Embora...
-'Embora' o quê?
-Embora, penso agora, respostas talvez viessem sutilmente empurradas por aquela necessidade de sermos sempre-muito-sinceras-de-todo-o-coração-uma-com-a-outra, manja?, não entendo muito, juro que nunca entendi mas ainda acho isso bem legal!, ou ainda, sutilmente empurradas guéla-afora a cada golada de cerveja, hehe, é isso!, verbalmente nós vomitávamos verdades, sabe, mas é porque estávamos felizes, pronto.
-Aham, to vendo que você tá bem feliz.
-Pois é, tô ótima, nós falamos mesmo sem parar, mas claro, não com toda aquela brutalidade ignorante de um vômito, até porque não temos mais a idade que tinhamos e estávamos entre amigas, maduras, civilizadas, cansadas, lésbicas, sem forças, saturadas do trabalho, da chuva borrando a maquilagem fraca dos olhos, enjoadíssimas de conflitozinho familiar, ora, não tinhamos mais tempo, saco, vontade ou motivo para sermos agressivas e esquentarmos a cabeça com bobagenzinha de ciúmes e relacionamentos amorosos no geral, que é isso, gente. Até porque esse assunto é meu e seu e de mais ninguém, e você sabe o tanto que eu te respeito, não sabe? Eu jamais te envolveria a toa, faça-me o favor... estávamos no bar, e quem pede mais uma gelada é porque não quer saber de problema. Conversávamos amigáveis, pois. Me vê o isqueiro, amor?
-Hm. Tá do seu lado. E o que mais vocês conversaram?
-Nada, Rafinha. Foi isso.
-Tá. E aquilo lá que você disse...
-E aquilo que eu disse, Rafa? Tudo o que eu disse a elas foi que talvez ninguém no mundo te veja como eu vejo. Egoísmo da minha parte ou não, sempre vou achar que isso é verdade. Ninguém no mundo, Rafa.
-Hm. Por que você acha isso?
-Ah, Rafa... Amanhã nós duas trabalhamos e meus olhos estão pesados, não vamos entrar numas de 'por que', pelo amor.
-Ah, mas vamos, viu. 'Pelo amor'. Por que você acha isso?
-Ai. Tá certo, todo mundo te ama igual, todo mundo te quer bem igual, todo mundo te defende e se preocupa igual e o caralho, você sabe disso, você tá sempre cheia de gente. Mas eu tô falando aqui é de ponto de vista, percebe? Ninguém vê em você as coisas que eu vejo. Todo mundo acha que você quer chamar atenção, mas eu sei que não é isso, tá legal? Eu sei... que não é isso... - bocejando - não basta eu saber?
-Na verdade, hm, não. E o que me deixa mais fudida é que você, minha namorada, não me defende direito nessas horas. Sei lá, você entra na onda das meninas, fazendo piadinhas e tudo mais.
-Rafa...
-Você é legal demais com todo mundo, isso é que me irrita, e.
-Rafa...
-...porque eu acabo sendo a chata sempre, percebe? A chata que quer atenção, e.
-RAFA.
-Nossa, como eu odeio esse seu tom. Fala.
-Eu estou morrendo de sono, acabei de ser quase assaltada, minha mãe está doente, meu dia foi uma droga e você não me perguntou sobre nada disso, você não liga se eu só queria dormir um pouco, mas agora senta aí e me escuta até o fim.
-Sim senhora.
-Se me perguntarem, Rafa. Só se me perguntarem, eu vou dizer que você é uma mulher linda e incrível e autêntica, e que eu sempre me senti um bebezinho, uma menina boba ao seu lado, mas que seus sentimentos e tudo mais são na maioria das vezes de criança, quero dizer, você sente as coisas feito adolescente, e.
-Hm. Então eu não sou emocionalmente madura, equilibrada como o resto das meninas e.
-Espera. Feito adolescente e eu não te culpo, muito pelo contrário: eu acho que isso é lindo e que isso é incrível porque ninguém nessa vida tem as mesmas percepções do mundo que você tem, tipo, ninguém, entendeu? E entender pelo menos um pouquinho do que se passa nessa sua cabeça já me desarma totalmente, eu fico besta feito um moleque, daí eu volto a ser a menina boba e pequena perto da mulher complexada e encanada e estouradinha que eu amo. Pronto.
-Pronto?
-Haha, porra, acabei de encher sua bola. Vai dormir, vai.
-Hm. Menininha.
-É que... ai, Rafa.
-Eu to brincando, boba. Só queria ouvir mais.
-Eu sei, é que pra mim esse assunto não é brincadeira. E tem mais, sim, tem muito mais, tem aquele lance dos ciúmes e da crise de idade. Você não sabe o quanto me desespera não poder te entender totalmente. Aliás, você tomou seu remédio? Enfim, deixa pra lá, passa de duas da manhã e... ah, você é linda.
-Você também. Desculpa ter desconfiado tanto.
-Tá, esquece isso, você é linda, você tocou num assunto deveras delicado, você é linda mas me arranca um pedaço cada vez que chora, ou surta sozinha, ou enche a cara, ou até quando faz aquelas coisas lá. Sei lá, Rafa. Vai dormir, vou ficar aqui um pouco.
-Na janela? Tá frio. Vem comigo.
-É, na janela, preciso acabar esse masso. Não se preocupa comigo.
-Tá bom, a gente conversa outra hora e você me explica essas suas piras...
-Não tem pira, não tem nada. Boa noite, te amo muito.
-Claro que tem, você que nunca me conta! Daí fica aí, surtando sozinha! Porra, acha isso legal?
-Você não precisa entender as minhas 'piras'. A única coisa que eu preciso é que você fique bem, como se fazer isso acontecer fosse minha função, sabe? Um anjo da guarda, sei lá. Meio sem motivo mesmo. Você não precisa entender.
-Tá, mas será que você não percebe que às vezes eu preciso, sim? Porque moramos juntas há quase um ano, só por isso, sabe. E eu nunca sei o que fazer por você e acabo sendo 'a cuzona acomodada'. Não é justo.
- 'Justo', meu. Sei lá o que é justo. Só preciso que você me abrace forte quando eu chego em casa e pergunte do meu dia. Coisinhas assim. Juro que não peço mais que isso. Agora dorme, vai. Te amo muito.
-Aham. Também.