domingo, 14 de dezembro de 2008
Som da Insônia
Tem um barulho que só se ouve de manhã bem cedo quando ainda é meio escuro. No caso, bem escuro. Os gnomos ainda nem voltaram a ser estátuas. Não sei se sou só eu que ouço, mas é o barulho que anuncia o começo do dia. O céu que passa de azul escuro para cinza escuro, daí cinza claro e azul claro - é isso? Cinza por causa da poluição, acho. Daí vem o sol e o barulho vai embora. Mas quando ele ainda está, parece que vem da janela. Que sai do chão da rua de paralelepípedo, sei lá. Digo paralelepípedo não só por ser uma palavra divertida, mas porque a rua da casa da minha tia em Santo André era assim. Aqui no Guará também tem um monte dessas ruas. Mas ai que saudade de Santo André. Não fosse a recuperação de química, eu estava lá. Lá foi onde me dei conta do barulho pela primeira vez, os pézinhos de meias coloridas na ponta dos dedos, a cara no vidro da janela procurando o barulho. Os olhos de quem não dorme por toda a rua, vendo toda a cidade cinza, todas as casinhas-de-vó com suas janelas antigas de madeira pintadas de marrom ainda fechadas. Toda aquela parte do bairro tinha cheiro de pão-de-mel porque tinha uma moça lá embaixo, no fim da rua, que fazia pra vender. Daí o vento batia e o cheiro subia. Era meio constante, eu o sentia fundo todas as manhãs, minha respiração provocava um mini-fog em contato com o vidro frio. Aquele friozinho de sempre, daquela cidade de boneca que era Santo André. E o barulho. Era como um motor de avião ouvido bem de longe. Não. Motor de trêm, para manter esse ar de nostalgia. Quando pequena, além de gnomos perambulantes, eu acreditava que enquanto os humanos dormiam, restavam as máquinas funcionando. Nossa, 'máquinas'? É, sei lá. Coisa de criança. Eu sonhava e imaginava e via um submundo vermelho e metálico que dominava a face da terra não-iluminada pelo sol, onde ainda todos dormiam. Quem sabe então o barulho que ouço não se trate do som dessas máquinas desligando? Ou, sei lá, um éco, com elas já desligadas. É, deve ser isso mesmo. A cidade inteira dorme, sobrando apenas o éco das máquinas, e gnomos, e meninas solitárias cheias de café e insônia com meias coloridas até as canelas, completamente contagiadas pelo cheiro e tato daquela cidade de céu aconchegantemente triste. Aconchegantemente triste - onde foi que ouvi isso? Triste, sim, feito andar sozinho pela Paulista num dia muito feio. Mas de algum modo, aconchegante. E carregar no bolso um cigarro um livro uma sombrinha um cachecol talvez, e a vontade de - sei lá. Pingo de chuva no nariz. Ih, é bom correr. É bom voltar pra casa e meter de novo a cara da janela. Quando chove, o barulho é outro. Ai, essas meninas. Sempre contagiadas pela vista da janela. Ai que perigo, pôr uma caneta na mão dessas que não dormem. Sempre um barulho lá fora. Sempre uma saudade aqui dentro.