O semi-incêndio ocorreu no início da tarde. Tive portanto quase oito horas do meu dia isentas de telefone, internet e televisão, coisa que me rendeu coragem para ressuscitar mais um daqueles livros que eu acabo comprando simplesmente por apresentarem um preço irresistível nos sebos. Às vezes nem chego a ler. É que lá no centro de Barão, onde eu estudo, tem muitos sebos. Um perigo, isso. Enfim, hoje o escolhido foi "As Pessoas dos Livros", da Fefê (faço a íntima, mermo). Não tenho nem o que comentar, você já sabe como é. Mesmo que não tenha lido esse, especialmente, o ritmo dela é constante em todos os romances, como se tudo o que ela já escreveu fosse uma série de suspiros múltiplos, e o espaço que há entre um livro e outro correspondesse ao momento de retomar o fôlego. Entende? Sempre aquela futilidade forjada, solidão paulistana, angústia comum. E triste. E boa.
Escuta. Talvez o que eu confesse agora venha a ser a coisa mais esquisita que já te disseram. Mas é que depois da página 54 eu passei a te comparar com meias finas de lã gasta. Pasme. É isso mesmo. E foi no começo da página 55 que eu fechei o livro e fui tomar groselha, nostálgica. Ai... vou explicar. Subi a escada-caracol com o copo na mão e teimei em ver fotos antiguíssimas, cara, tão velhas quanto fotos podem ser. Algumas até em preto e branco, de quando minha avó era menina, outras amareladas, dos anos 80: eu com um chapéu do Mickey com meus primos em volta da piscina. Sempre invejei àqueles que souberam aproveitar a simplicidade da época. Enfim. Eu falava de meias, né. Bom, negócio das meias é o seguinte, na casa da minha tia que é onde costumava ter essa piscina, havia também um mezanino, e um armário, e um baú. Não tem coisa que criança gosta mais do que baú. Perdíamos horas remexendo naquelas tralhas repletas de poeira, chapéus e, adivinha: meias. Não tem coisa que criança gosta menos do que meia. Ainda mais criança feito eu, que vivia com o pé no barro. Mas acontece que aquelas eram especiais. Juro. Eu tinha, por aquelas meias, desmedido cuidado. Como se ainda fossem tempos de guerra e ter um par daquelas, motivo de prestígio. As minhas eram azuis, tinham furos e manchas que eu nem questionava, mal cabiam no meu pé mas eu não emprestava pra ninguém. Cismei com aquele troço. Um troço lindo qualquer, que eu devo ter encontrado por aí e que de súbito se tornou uma espécie de companheiro imaginário, acessório essencial, feito fosse o primeiro bicho de pelúcia, havia um carinho inexplicável por aquele naco inorgânico que por algum motivo eu sabia que seria pra sempre.
De fato, o troço foi guardado por anos e aos poucos se eternizava em nostalgia e cheiro de armário velho. Entende? Querendo ou não, tinha um pouco de mim, alí. Sem que eu me desse conta, parte da minha história se arquivava de forma sutil, dentro de um baú, pra sempre.
Sei lá se isso chega a ser incrível, é bobinho e bastante simplificado perto de algo grande e assustador que é se saber apaixonada pela pessoa certa e querer pela primeira vez firmar planos para o futuro, mas, veja. É simples. E é eterno. Como tudo mais deve ser.


